A Medida Provisória nº 1.300, de 21 de maio de 2025, redesenha os contornos jurídicos da autoprodução de energia elétrica no Brasil. Longe de ser um ajuste pontual, a nova regulamentação redefine quem pode ser considerado autoprodutor, impõe critérios mais rigorosos à equiparação e fecha a porta para estruturas meramente formais criadas com o objetivo de acessar benefícios tarifários. A lógica subjacente é de correção de distorções — mas essa racionalidade regulatória traz consigo implicações relevantes que merecem ser analisadas com cuidado.
De início, o novo artigo 16-A da Lei nº 9.074/1995 reforça que só pode ser equiparado a autoprodutor o consumidor que detenha demanda contratada agregada de, no mínimo, 30 megawatts, com unidades individuais de ao menos 3 MW. Além disso, é exigido que haja participação societária com direito a voto ou controle societário comum com a empresa titular da outorga. Essa mudança parece ter um objetivo claro: garantir que os benefícios da autoprodução sejam acessados apenas por quem efetivamente assume risco e participa do empreendimento gerador.
Do ponto de vista da Análise Econômica do Direito, essa alteração busca reequilibrar os incentivos. Reduz-se a assimetria entre custo e benefício, desfazendo estruturas em que consumidores formavam sociedades de fachada para acessar descontos na TUSD e na TUST, sem qualquer vínculo operacional real com a geração. A medida, nesse sentido, parece promover maior eficiência alocativa e reduzir externalidades negativas — principalmente para os consumidores cativos, que acabam arcando com os custos deslocados pelos chamados “autoprodutores de papel”.
Mas há contrapartidas relevantes. Ao restringir o acesso à equiparação, a medida pode excluir do mercado justamente aqueles consumidores que, isoladamente, não teriam capacidade de implantar projetos de autoprodução, mas que o fariam por meio de consórcios, fundos ou estruturas coletivas. A exigência de participação societária direta, com direito a voto, pode se tornar um obstáculo prático à democratização da autoprodução, limitando sua viabilidade aos grandes grupos verticalizados do setor.
Além disso, embora a MP estabeleça regras de transição, inclusive um prazo de 60 dias para comprovação documental e até 24 meses para efetivar transferências societárias, esses prazos podem ser considerados curtos diante da complexidade jurídica e operacional envolvida. Ainda que não haja propriamente retroatividade, há o risco de frustração de expectativas legítimas de agentes que estruturaram seus projetos com base nas regras anteriores — especialmente porque a vedação à equiparação se aplica a usinas que já tenham entrado em operação comercial, mesmo que os contratos societários estejam em curso.
Outro ponto de tensão diz respeito ao impacto sobre a expansão da geração renovável. Muitas usinas solares e eólicas foram viabilizadas justamente pela lógica da autoprodução por equiparação. Ao limitar esse instrumento, a MP pode comprometer a atratividade econômica de novos empreendimentos — sobretudo em regiões onde os custos logísticos ou de conexão à rede são elevados e exigem incentivos robustos para se tornarem viáveis.
Ao mesmo tempo, não se pode ignorar a lógica distributiva que orienta a medida. Um dos objetivos explícitos da MP é evitar que grandes consumidores, sob o rótulo de autoprodutores, transfiram seus encargos para a base tarifária dos consumidores cativos. Sob a ótica da justiça tarifária, o movimento é coerente: quem consome, contribui. E quem se beneficia da rede, deve pagar por ela de forma proporcional. A política pública, nesse caso, abandona os subsídios implícitos e passa a exigir compromisso econômico com o sistema.
Trata-se, portanto, de uma decisão regulatória com efeitos redistributivos importantes. O desafio está em calibrar essa redistribuição sem desincentivar o investimento e sem comprometer a segurança jurídica. A eficiência econômica, na AED, nunca é absoluta — ela é uma questão de trade-offs. E neste caso, o trade-off é entre limitar distorções e manter o dinamismo do setor.
A MP nº 1.300/2025 acerta ao enfrentar o problema da equiparação excessiva, mas precisará ser complementada por normas infralegais que ofereçam segurança jurídica, prazos razoáveis e clareza na aplicação dos critérios. A autoprodução, afinal, é uma peça estratégica na transição energética e no fortalecimento da matriz renovável brasileira. A regulação não deve freá-la — deve apenas devolvê-la à rota da responsabilidade.