A recente legislação sobre o Marco Legal e Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono – recém sancionada Lei n. 14.948/2024, antigo Projeto de Lei n. 2308/2023 – introduziu medidas significativas para promover o desenvolvimento e a produção de hidrogênio sustentável no Brasil. Esta lei prevê a instituição de incentivos, estabelece o Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (ReHIDRO) e cria o Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono, delineando um marco regulatório que visa posicionar o Brasil como um líder na transição energética global.
A legislação apresenta uma estrutura abrangente, começando pelas disposições gerais e partindo para o capítulo segundo, que trata especificamente da Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono. Neste, definem-se os princípios, objetivos e conceitos essenciais deste marco legal. Em seguida, o capítulo terceiro dispõe sobre os instrumentos da Política Nacional do Hidrogênio, trazendo expressamente o Programa Nacional do Hidrogênio, as diretrizes da gestão de risco, as atividades atreladas à produção de hidrogênio, o denominado Sistema Brasileiro de Certificação do hidrogênio, o Regime Especial de Incentivos para Produção de Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (Rehidro) e as alterações da Lei n. 9.427/1996, para acrescentar as respectivas atribuições da Agência Nacional do Petróleo (ANP).
O objetivo do presente artigo é, de maneira pormenorizada, tratar sobre as principais disposições previstas neste tão esperado marco legal e, de outra banda, analisar alguns de seus principais dispositivos com vistas a antecipar sua aplicação na realidade prática de cada empresa que potencialmente participará da cadeia de produção do hidrogênio. Afinal de contas, alguns questionamentos perduram perante a recente legislação: o que é a lei considerou como hidrogênio de baixa emissão de carbono? O que foi estabelecido como hidrogênio verde? Quais serão os incentivos para sua produção e comercialização? Como será realizada sua certificação? Esta será obrigatória ou voluntária? Qual agência regulatória estará à frente do tema hidrogênio?
Com a paciência necessária à análise de qualquer nova legislação, adiante delineamos alguns de seus principais dispositivos. Muito se espera deste novo marco legal, mas, acima de tudo e desde logo, rogamos para que o órgão regulador regule apenas o que for necessário. É aquela máxima: às vezes, o melhor caminho do órgão regulador é não regular – e deixar que as negociações e o mercado privado façam o seu papel de agentes principais.
Pois bem. Entre os princípios estabelecidos, destacamos a neutralidade tecnológica na definição de incentivos. Conforme o Art. 2º, inciso I, da Lei n. 14.948/2024, os incentivos e regulamentos não devem favorecer ou discriminar qualquer tecnologia específica na produção de hidrogênio. Este princípio promove a inovação e a competitividade, permitindo que as soluções mais eficientes e sustentáveis prevaleçam no mercado. Adotar a neutralidade tecnológica é fundamental para garantir que os avanços não sejam limitados por regulamentações que privilegiem certas tecnologias em detrimento de outras. Ao permitir que diferentes tecnologias e métodos concorram em igualdade de condições, incentiva-se o desenvolvimento de novas técnicas e processos que podem contribuir significativamente para a redução das emissões de carbono e a sustentabilidade energética.
A inserção competitiva do hidrogênio (inciso II do art. 2º) é outra prioridade, garantindo que o hidrogênio produzido no Brasil possa competir em igualdade de condições tanto no mercado interno quanto no externo. A previsibilidade na formulação dos respectivos regulamentos será algo fundamental para atrair investimentos e, principalmente, reduzir a insegurança regulatória que pode desestimular a participação de novos atores no mercado. Além disso, o aproveitamento da infraestrutura existente e o fomento à pesquisa (incisos IV e V) são fundamentais para a rápida implementação e desenvolvimento das tecnologias necessárias.
Os objetivos da Política Nacional (art. 3º) são amplos e abrangem desde a preservação do interesse nacional até a promoção do desenvolvimento sustentável e a ampliação do mercado de trabalho. Incentivar diversas rotas de produção de hidrogênio é essencial para garantir a flexibilidade e a adaptabilidade da matriz energética brasileira. Ao promover aplicações energéticas do hidrogênio, o Brasil pode diversificar sua matriz energética, reduzindo a dependência de combustíveis fósseis e contribuindo para a redução das emissões de gases de efeito estufa. Esta iniciativa, diga-se, está alinhada com os compromissos internacionais de mitigação das mudanças climáticas e ajuda a cumprir as metas estabelecidas no Acordo de Paris.
No âmbito da exportação, a valorização do hidrogênio posiciona o Brasil como um fornecedor estratégico de energia limpa no mercado internacional. Com a crescente demanda global por fontes de energia sustentável, especialmente na União Europeia e em países asiáticos como Japão e Coreia do Sul, o Brasil pode aproveitar suas vantagens competitivas, como a abundância de recursos naturais (sol e vento) e a capacidade instalada de produção de energia renovável, para se tornar um líder no mercado de hidrogênio. Isso pode resultar em significativas receitas de exportação, contribuindo para o equilíbrio da balança comercial e fortalecendo a economia nacional.
A lei em comento também estabelece conceitos fundamentais para a regulamentação do setor de hidrogênio. Por exemplo, a cadeia de custódia é um modelo de requisitos mínimos para rastreamento dos atributos do hidrogênio ao longo de toda sua cadeia de suprimento. Imagine uma empresa que produz hidrogênio verde usando eletrólise com energia solar. Desde a extração da água até o uso da eletricidade gerada por painéis solares, todos os dados serão registrados. Quando o hidrogênio é transportado para um distribuidor, as condições de transporte, armazenamento e entrega poderão ser monitoradas e documentadas. O consumidor final, ao adquirir o hidrogênio, poderá acessar um relatório detalhado que demonstra que o produto atende aos critérios de hidrogênio verde, com todas as etapas do processo certificadas e auditadas conforme os padrões estabelecidos.
E o que a lei definiu como hidrogênio? Nascem três denominações:a) hidrogênio de baixa emissão de carbono; b) hidrogênio renovável; e c) hidrogênio verde.
O hidrogênio de baixa emissão de carbono é definido como o hidrogênio combustível ou insumo industrial coletado ou obtido a partir de fontes diversas de processo de produção e que possua emissão de gases de efeito estufa com valor inicial menor ou igual a 7 kgCO2/kgH2. Esta definição estabelece um padrão claro para a produção de hidrogênio sustentável, promovendo práticas que minimizem a pegada de carbono do produto – apesar de padrões internacionais mais rigorosos girarem em torno de 4 ou 5kgCO2/kgH2. Já o hidrogênio renovável é aquele de baixa emissão de carbono, coletado como hidrogênio natural ou obtido a partir de fontes renováveis, incluindo o hidrogênio produzido a partir de biomassa, etanol e outros biocombustíveis, bem como o hidrogênio eletrolítico, produzido por eletrólise da água usando energias renováveis como solar, eólica, biomassa, hidráulica, biometano e geotérmica. Por fim, o hidrogênio verde refere-se ao hidrogênio produzido por eletrólise da água, utilizando fontes de energias renováveis como as citadas anteriormente e, ainda, “sem prejuízo de outras que venham a ser reconhecidas como renováveis”.
Neste ponto, convém salientar que o hidrogênio de baixa emissão de carbono é a categoria mãe. Ou seja, são filhos seus as subcategorias hidrogênio renovável e hidrogênio verde. Todo hidrogênio renovável se enquadra na categoria de baixa emissão de carbono. Em continuidade, aparentemente o hidrogênio verde é uma subcategoria do hidrogênio renovável, com a especificidade de se referir à produção por meio da eletrólise da água, sem restringir a forma ou a fonte de energia, como a solar ou a eólica.
Outros conceitos trazidos pela lei incluem os carreadores de hidrogênio, que são substâncias ou materiais utilizados para armazenagem e estocagem de hidrogênio. Esses carreadores desempenham papel na logística do hidrogênio, permitindo seu transporte e armazenamento de forma segura e eficiente.
E como ocorrerá a certificação do hidrogênio de baixa emissão de carbono? Quem poderá funcionar como instituição certificadora?
A Lei 14.948/2024 criou o Sistema Brasileiro de Certificação do Hidrogênio e, podemos dizer, que as disposições legais respectivas são um componente central do novo marco legal. O objetivo do sistema é informar a intensidade de emissões relativas à cadeia do produto hidrogênio. A adesão ao sistema será voluntária para os produtores de hidrogênio, podendo ser utilizada para fins de reporte e divulgação (ações de marketing). A regulamentação específica tratará do reconhecimento da certificação de hidrogênio importado, estabelecendo padrões e requisitos mínimos para a obtenção do certificado.
O certificado emitido deverá conter, no mínimo, as características contratuais dos insumos empregados, a localização da produção, informações sobre o ciclo de vida e a quantidade de CO2 emitida. Esta transparência garantirá a rastreabilidade e a integridade do produto, assegurando que os consumidores tenham acesso a informações detalhadas sobre a origem e o impacto ambiental do hidrogênio que estão adquirindo.
A denominada “instituição acreditadora”, a ser designada pela autoridade reguladora, será responsável pelo credenciamento das empresas certificadoras e pelos procedimentos de certificação, por meio de ato administrativo próprio ou instrumento específico. Apenas instituições privadas que atendam aos requisitos estabelecidos pela autoridade reguladora e sejam credenciadas pela instituição acreditadora poderão atuar como empresas certificadoras.
As empresas certificadoras deverão enviar à gestora dos registros do Sistema cada certificado emitido e suas respectivas informações. A gestora será responsável pela gestão da base de dados nacional de registros de certificados de hidrogênio, que será uma base pública de acesso de dados. Os certificados de hidrogênio deverão resguardar a integridade ambiental, assegurando a inexistência de dupla contagem. A dupla contagem se refere à prática de certificar o mesmo volume de hidrogênio mais de uma vez para fins de créditos de carbono ou incentivos, o que poderia distorcer os dados sobre as emissões e comprometer a eficácia das políticas ambientais.
É esperado que a autoridade reguladora preveja mecanismos de interoperabilidade e harmonização com padrões internacionais de certificação de hidrogênio. Isso será fundamental para assegurar que o hidrogênio produzido no Brasil seja reconhecido e aceito nos mercados globais, promovendo a competitividade do hidrogênio brasileiro e fortalecendo a posição do Brasil como um líder em energia limpa.
E o que é a chamada gestão de risco?
A gestão de risco é outro aspecto interessante da política, com instrumentos como o Estudo de Análise de Risco (EAR), o Plano de Gerenciamento de Risco (PGR) e o Plano de Ação de Emergência (PAE). Esses documentos prevêem as ações a serem executadas em caso de emergência, garantindo a segurança e a mitigação de riscos associados à produção e ao manuseio de hidrogênio. A produção de hidrogênio poderá ser realizada por empresas ou consórcios constituídos sob as leis brasileiras, com sede e administração no País, e com autorização do órgão regulador competente, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Salientamos que a transferência de titularidade da autorização é permitida pela lei, mediante prévia e expressa aprovação da ANP, e desde que o novo titular atenda aos requisitos previstos na norma. Essa flexibilidade tende a permitir que o mercado de hidrogênio se adapte a mudanças e novas oportunidades, mantendo a segurança e a conformidade regulatória.
Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono: o ReHIDRO
O Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (ReHIDRO) foi criado com o objetivo de fomentar o desenvolvimento tecnológico e industrial, a competitividade e a agregação de valor nas cadeias produtivas nacionais de hidrogênio. O programa será regulamentado pelo Poder Executivo, que estabelecerá os requisitos para habilitação, incluindo o percentual mínimo de utilização de bens e serviços de origem nacional no processo produtivo e o investimento mínimo em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Os beneficiários deverão aplicar um percentual mínimo em projetos de desenvolvimento sustentável de transição energética localizados no país. Os incentivos tributários aos beneficiários do ReHIDRO terão vigência de cinco anos, a partir de 1º de janeiro de 2025. Empresas que já atuam na data da publicação da lei também poderão requerer habilitação, desde que cumpram os requisitos, incluindo a regularidade fiscal em relação aos impostos e às contribuições administradas.
A implementação desta legislação representa um passo significativo para o Brasil na direção de uma economia de baixo carbono, impulsionando a inovação tecnológica, a competitividade industrial e a sustentabilidade ambiental. Com um foco claro na neutralidade tecnológica, previsibilidade regulatória e desenvolvimento sustentável, o Brasil está posicionado para se tornar um líder global na produção e exportação de hidrogênio. Esta legislação não só fortalece o setor energético, mas também promove uma economia mais robusta e resiliente, capaz de enfrentar – espera-se – os desafios do futuro com soluções inovadoras e sustentáveis.