Por meio da Comissão do Meio Ambiente, o Senado Federal apresentou o projeto de lei n. 1878/2022, cujo escopo é a criação de política voltada à regulação da “produção e usos para fins energéticos do Hidrogênio Verde”. De maneira direta, o propósito do presente artigo é trazer breves insights sobre os principais artigos e normas abarcadas pelo referido projeto de lei. Uma análise preliminar para trazer mais que potenciais dogmas e definições nele previstos, e, sim, para propiciar reflexões iniciais ao leitor.
Dando um panorama geral sobre o projeto de lei n. 1878/2022, observa-se que ele está dividido em nove capítulos: i. disposições preliminares; ii. definições técnicas; iii. fundamentos e princípios da produção e do uso do hidrogênio verde; iv. regulação e fiscalização do segmento de hidrogênio verde; v. produção do hidrogênio verde; vi. procedimentos especiais para a expedição de licença da produção de hidrogênio verde; vii. uso da água para a produção de hidrogênio verde; viii. incentivos ao desenvolvimento do segmento do hidrogênio verde; ix. disposições gerais.
O capítulo inicial do projeto de lei em comento deixa claro, como sói acontecer em normas deste gênero, que o objetivo da futura lei é trazer as “diretrizes visando à normatização da produção e usos para fins energéticos do Hidrogênio Verde”. Para além de meros incentivos, a primeira parte do projeto de lei n. 1878/2022 ainda pontua que a norma estabelecerá “as atribuições institucionais associadas a essa fonte” de energia, “no âmbito da Política Energética Nacional” (art. 1º do PL).
Entre os conceitos abrangidos no segundo capítulo do projeto ora em análise, encontra-se a definição daquilo que a lei trará como sendo o chamado hidrogênio verde, isto é, o “hidrogênio que permanece no estado gasoso em condições normais de temperatura e pressão, gerado a partir da eletrólise da água, a qual se utiliza, para sua produção, da energia elétrica gerada por fontes de energia renováveis, sem emissão direta de dióxido de carbono na atmosfera no seu ciclo de produção”. E, por eletrólise da água, entende-se como sendo o “processo de decomposição da água em oxigênio e hidrogênio por efeito da passagem de uma corrente eléctrica pela água” (incisos II e III do art. 2º do PL).
Em contrapartida, por meio da Comissão de Minas e Energias, no dia 21 de junho de 2023 deu-se início ao projeto de lei n. 2308/2023, cujo escopo é dispor “sobre a definição legal de hidrogênio combustível e de hidrogênio verde”, inserindo tais conceitos e marcos normativos na Lei n. 9.478/1997, a conhecida “Lei do Petróleo”. E, já trazendo um significado um tanto quanto diferente daquele abarcado no projeto de lei n. 1878/2022 – cuja dissonância, inclusive, deverá ser resolvida pelos órgãos legislativos antes que ambos os projetos deixem de ser apenas projetos e sejam promulgados como lei – o projeto de lei n. 2308/2023 altera o artigo 6º da Lei do Petróleo e passa a prever que hidrogênio verde seria o “hidrogênio combustível obtido a partir de quaisquer processos ou rotas tecnológicas com uso de fontes renováveis de energia, tais como eletrólise da água, gaseificação de biomassa renovável, reforma de biogás ou de biometano, reforma de glicerina coproduto da fabricação de biodiesel, reforma de etanol, fotólise solar da água, entre outros processos dispostos em regulamento”.
Já por hidrogênio combustível, caso o projeto de lei n. 2308/2023 seja efetivamente aprovado, a Lei do Petróleo também passará a prever o seu conceito, qual seja: “hidrogênio utilizado como combustível em sistemas de célula de combustível, em motores ou em outros processos de combustão, para fins de transporte, aquecimento, geração de energia elétrica e aplicações industriais, entre outras aplicações dispostas em regulamento”. E, diga-se, apenas este é, por ora, o propósito do projeto de lei n. 2308/2023, isto é, incluir na Lei do Petróleo a definição legal de hidrogênio verde, hidrogênio combustível e sistema de célula de combustível. Espera-se que ambos os projetos passem
a conversar entre si, evitando-se a promulgação de leis que, desde a sua concepção, já eram irmãos gêmeos, mas bivitelinos e de personalidades bem distintas.
Em continuidade, como era de se esperar, o projeto de lei n. 1878/2022 traz, em seu art. 3º, o que sempre está contido na maioria das leis brasileiras e que, na prática, geram pouco ou nenhum efeito no mundo real: princípios fundamentais. Basicamente, conceitos jurídicos indeterminados como: o interesse nacional, a utilidade pública, a segurança energética, a proteção e a defesa do meio ambiente, a responsabilidade quanto aos impactos e externalidades decorrentes da produção e do uso do hidrogênio verde e a economicidade do uso dos recursos naturais. Tais princípios, diga-se desta forma, devem funcionar como fundamentos da exploração e desenvolvimento da produção, transporte e armazenamento do hidrogênio verde – é o que espera o legislador.
A partir do capítulo 4º do projeto de lei em questão, finalmente são encontradas maiores nuances regulatórias e de atribuição sobre a “fiscalização do segmento do hidrogênio verde”. Promovendo alteração no art. 7º da Lei n. 9.478/1997, o projeto de lei 1878/2022 coloca como órgão regulador do hidrogênio verde a Agência Nacional do Petróleo (ANP), a qual passará a ser denominada de “Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural, Biocombustíveis e Hidrogênio Verde”.
De maneira mais específica, por meio do projeto de lei em análise, o art. 8º da Lei n. 9.478/1997 passará a prever que a ANP terá como finalidade “promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural, dos biocombustíveis e do hidrogênio verde”. Entre suas atribuições relacionadas ao hidrogênio verde encontram-se: i) a implementação da sua política nacional; ii) a fiscalização direta ou por intermédio de órgãos estatais das atividades a ele relacionadas; iii) a aplicação de sanções administrativas e pecuniárias previstas em lei, regulamento ou contrato; iv) a organização e manutenção do acervo das informações e dados técnicos relativos ao hidrogênio verde, bem como a manutenção das boas práticas voltadas à preservação do meio ambiente; v) a especificação da qualidade dos seus derivados; e, vi) em especial, a regulação, autorização e fiscalização das atividades da cadeira do hidrogênio verde, “inclusive a produção, importação, exportação, armazenagem, estocagem, padrões para uso e injeção nos pontos de entrega ou ponto de saída”.
Sem exageros, caberá à ANP basicamente tudo relacionado à hidrogênio verde – desde sua regulação específica, aplicação de sanções administrativas e pecuniárias, fiscalização da atividade e o que mais se puder imaginar diante da abrangência das potenciais normas trazidas pelo projeto de lei 1878/2022. Mas, se cabe à ANP promover a regulação, contratação e fiscalização do hidrogênio verde, a quem caberá sua produção?
Pois bem, o artigo 6º do projeto de lei n. 1878/2022 é claro em dispor que “qualquer empresa ou consórcio de empresas constituídas sob as leis brasileiras com sede e administração no País poderá obter licença da ANP para exercer as atividades econômicas da produção de Hidrogênio Verde”. Ainda, o parágrafo primeiro do citado artigo registra que a licença prevista busca “permitir a exploração das atividades econômicas em regime de livre iniciativa e ampla competição”.
Como condição para obtenção da licença de produção do hidrogênio verde – que será emitida pela ANP em prazo a ser estabelecido em regulamento -, o projeto de lei sob análise constitui alguns requisitos, os quais poderão, ainda, ser aprimorados pelo órgão regulador: i) “estar constituído sob as leis brasileiras, com sede e administração no País”; ii) “apresentar regularidade perante as fazendas federal, estadual e municipal, bem como demonstrar a regularidade de débitos perante a ANP”; iii) “apresentar projeto básico da instalação, em conformidade às normas e aos padrões técnicos aplicáveis à atividade”; iv) “apresentar licença ambiental, ou outro documento que a substitua, expedida pelo órgão ambiental competente”; v) “apresentar projeto de controle de
segurança das instalações aprovado pelo órgão competente”; vi) “deter capital social integralizado ou apresentar outras fontes de financiamento suficientes para o empreendimento”; vii) “a emissão de DIP pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA)”. (arts. 6º e 7º do PL).
Entre outras previsões, o projeto de lei n. 1878/2022 ainda registra que “a unidade produtora de Hidrogênio Verde que produzir ou comercializar energia elétrica deverá atender às normas e aos regulamentos estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e demais órgãos e entidades competentes”. Como esperado, o dispositivo seguinte do referido projeto de lei altera o artigo 3º da Lei n. 9.427/1996, para trazer como incumbência extra da ANEEL “regular a atividade de geração de energia elétrica a partir do hidrogênio verde, observando os limites de atuação estabelecidos pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE)”.
Chegando ao capítulo VII do projeto de lei n. 1878/2022, passa-se a prever que “a outorga para o uso de recursos hídricos associada à implantação de empreendimentos para a geração do hidrogênio verde observará a lei específica das águas e a regulamentação da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA)”. Indo além, o artigo 11 do projeto ora em análise dispõe que o agente autorizado a utilizar recursos hídricos para a produção de hidrogênio verde estará obrigado a: i) “adotar medidas necessárias para assegurar a economicidade de recursos hídricos no processo de produção de Hidrogênio Verde, a segurança de pessoas e instalações, e a proteção do meio ambiente”; ii) “comunicar à ANP, à ANEEL, e à ANA, imediatamente, fatos relevantes que sejam afeitos aos objetivos institucionais dessas autarquias”; e iii) “responsabilizar-se civilmente pelos atos de seus prepostos e indenizar todo e qualquer dano decorrente das respectivas atividades, devendo ressarcir à União os ônus que esta venha a suportar em consequência de eventuais demandas motivadas por atos de responsabilidade dos agentes autorizados”.
Acerca dos incentivos voltados ao desenvolvimento do “segmento do hidrogênio verde”, o projeto de lei n. 1878/2022, em seu artigo 12, traz que, “no período de 10 anos a contar da publicação desta lei, o Poder Executivo disponibilizará, ao setor de Hidrogênio Verde, incentivo à Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I), mediante a oferta de linhas de crédito para PD&I por entes da Administração caracterizados como AFOF”. Ademais, como condição ao licenciamento de projetos e o acesso a crédito incentivado pela União, o projeto de lei em questão impõe a existência de um “compromisso do licenciado quanto à capacitação e formação dos respectivos trabalhadores envolvidos no empreendimento”.
Por derradeiro e de razoável importância, as disposições gerais do projeto de lei n. 1878/2022 especifica que “todos os atos de licenciamento dos projetos de produção de Hidrogênio Verde deverão detalhar” questões atinentes: i) ao “gerenciamento e planejamento do projeto”; ii) como será realizada a “remoção da infraestrutura relacionada ao projeto”; iii) aos “processos pós-descomissionamento, como o destino dos elementos removidos, a recuperação dos sites e o monitoramento”; iii) às fases do projeto e as respectivas cláusulas sobre o descomissionamento.
A partir do mapeamento ora realizado, torna-se evidente que ainda existe muito caminho para que ocorra uma efetiva normatização do hidrogênio verde e da sua respectiva produção no Brasil. Notadamente, ainda não há consenso sobre o próprio conceito de hidrogênio verde nos órgãos legislativos. Apesar dos pesares, percebe-se uma intensificação na preocupação do legislador em regular o tema e instituir o seu marco normativo. Sem juízos de valor, ao menos por hora, espera-se uma maior abertura no tratamento do tema e a busca por uma tecnicidade em sua regulação capaz de diminuir a assimetria de informações e de conceitos que hoje permeia o setor de energia.